quinta-feira, 22 de maio de 2008

Os confundidos

Os confundidos


- estou cansada. Quase meia-noite.

- continuo de férias, posso acordar tarde.

- mas eu, não. Afinal, que importa? Suporto bem uma
Noite sem sono. Tenho passado outras.

- é uma alusão a mim?

- talvez.

- não fiz censuras, pergunta não disse nada. Desde o jantar que
Estamos calados.

- existe alguma coisa que fui condenada a ouvir hoje.
Sinto isso no ar, nas mãos. Espero, ao menos, que o horror
Tenha início antes que clareie o dia. Amanhã é terça, dia de trabalho.


Um de nos levantou-se, ou irá ainda levantar-se,
Entreabri a cortina, olhar a noite. O rumor dos veículos,
Continuado, ascenderá - ascendeu? - das avenidas, regirando
Na sala, sobre as aquarelas em seus finos caixilhos, sobre
As poltronas de couro com almofadas vermelhas, em torno do
Abajur aceso. As estrelas vibrando, parecendo abaladas pelo
Rumor da cidade que não dorme. Estamos de mãos dadas,
Qual destas mãos arde? Olhamos a parede vazia.


- hoje sofri novamente um ataque. Prometi nunca mais
Tornar a fazer isso. Mas não posso cumprir, simplesmente
Não posso. Veio com a mesma força de sempre. É abalador.

- então não há remédio.

- deve haver.

- tenho de viver até quando nesta danação? Vou esperar até o fim da vida?

- é preciso compaixão.

- novamente as palavras. Inúteis como sempre.

- não são inúteis.

-estou farta. Tínhamos passado três semanas sem essa
Coisa odiosa. Dias perfeitos.

- manhãs, tardes e noites nós estávamos juntos. Eu não
Podia duvidar... de mim.

- bastou eu me afastar algumas horas, para recomeçar
Outra vez. Então tudo o que faço é o mesmo que nos olhar
Olhos de um cego?

- quero explicar.
- prefiro não ouvir.

- tenho de ouvir.

- e por cima de tudo, ainda isto: uma ausência total de
Piedade. Admito que suspeite de mim, embora sem motivo. Mas
Por que confessar? É crueldade.

- quero ser sincero.

- desprezo até a náusea esse tipo de sinceridade.
Enjoa-me. Sinceridade, como? Entrego-me confio. Sinto os
Abraços, beijos. E que existe por dentro dos afagos? Tenho
Os olhos fechados. Minha boca está na minha boca. E dois
Olhos sondam-me. Isto é ser sincero?

- não suspeito de nada quando nos amamos.

- como posso saber? Como posso crer?

- estou dizendo: não suspeito de nada. Alguma coisa,
Quando estamos juntos, me restitui a confiança. Acho que
Assim vai ser eternamente, que toda sombra acabou e que não
Voltará a existir, entre nós, maldade alguma. De repente,
Vejo-me sozinho. E recomeço.

- porque não suspeitar quando estou presente? Posso
Estar aqui, comigo, nua e pensando em outro homem. Comparando
Em segredo o modo de abraçar-me. O jeito de...

- melhor não prosseguir. Destrói-se isso, esta
Segurança, a derradeira, a única, me resta o que?

- pouco se me dá. Para mim, nem essa, ao menos, existe.
Principio também a duvidar de mim mesma, já não me conheço,
Não sei mais quem sou.

- quem, com gestos nervosos, abrem a cigarreira dourada,
Bate comum golpe decidido e seco a tampa do isqueiro,
Depois de olhar a chama demoradamente? Um se levanta,
Anda, outro permanece sentado, depois este se ergue, atravessamos a sala, alguém volta a sentar-se, continuamos de pé, dorso contra dorso, junto.

- tomei banho. Foi talvez o tempo que está quente.

- sim. E passei a flanela na banheira.

- nunca fiz isso.

- é o que sempre faço.

- digo que o tempo estava quente. E logo em seguida,
Que a banheira está seca por causa da flanela que passei.
Porque as duas versões? São estas mentiras que destroem.

- não estou mentindo.

- estou!

- uma coisa tem que excluir a outra. Tudo isso é absurdo.

- a toalha também estava seca. Disse a mim mesmo que
Não tinha importância. Mas neste momento, já começara a lembrar-me das recomendações que me fizera. Para não sair, aproveitar as últimas tardes de férias, ficarem em casa preparando o trabalho sobre a correspondência de Lawrence.

- foi um erro. Com determinadas pessoas, é impossível não errar. Erra-se sempre.

- há parte de nós mesmos que não devem ser reveladas nunca. Mas é preciso que eu seja absolutamente sincero. Como Lawrence. Ele era sincero.

- não sou Lawrence.

- o que senti, o que sinto, é igual ao que me sucedia
Quando era menino e ficava sozinho. Excitava-me com o que?
Retrato de mulheres? Histórias licenciosas? Com a solidão.
Insensivelmente, irresistivelmente, eu buscava em mim
O prazer, um prazer aflito e imaturo. Para em seguida cair em
Depressão; e começar tudo, assim que me visse outra vez só
No quarto ou no banheiro. A solidão para mim era o mesmo que uma mulher nua. Agora, ela é como a presença de uma rival.

- não existe rival.

- quando estamos juntos, é também assim que penso. Não
Há outro, nem ouvem nunca, ambos nos amamos. Mas se me vejo
Só!

- tenho prazer em despertar compaixão.

- mereço compaixão.

Dirigi-me ao quarto de dormir, permaneço na sala, com vagarosos gestos ponho o négligé, afago o resto, a barba começa a apontar, volto para junto de mim, são leves meus passos, continuo sentado, não me levantei.

- é melhor acabar com tudo. Estou cansada.

- pensei que a insistência para que eu passe à tarde em casa era um ardil.

- não insisti.

- um ardil para que eu não saísse e não telefonasse.
Porque não me banhara se havia tempo? Desejava ganhar
Alguns minutos, meia hora que fosse chegar um pouco mais
Cedo a algum encontro ajustado há quinze dias, ou talvez
Combinado no hotel, num momento de ausência, talvez no
Cabeleireiro, ou na manicure, como se pode saber? Devo
Dizer que não telefonei.

- não acredito. Houve um momento em que foram me chamar. Quando atendi, haviam desligado.

- quem imagina que foi?

- não faço idéia.

- quem foi?

- não sei. Sinceramente, não sei.

- não telefonei. Mas vasculhei, uma por uma, todas as
Suas bolsas. Dizia a mim mesmo que estava fazendo uma
Insensatez, que poderia encontrar algum papel do qual não
Fosse culpada, mas que parecesse acusador e que isto me
Destruiria, e que afinal seria inútil, pois não tenho
Coragem de deixá-la.

- encontrou alguma coisa?

- isto: um nome de homem. Este endereço. Quero saber quem é.

- não me lembro.

- empalideci.

- quem não ficaria pálido? De cólera!

- cólera por que, se eu é que sou o ofendido?

- sou eu a ofendida.

- quem é este?

- ignoro. Talvez algum fabricante de calçados. Talvez
Seja algum cabeleireiro, recomendado por companheiras da
Repartição. Letra é minha. Mas não me lembro de haver
E que me ofereça um pouco de paz. Que não me torture e que
Não se torture os dias todos da vida. Com esta fome de
Posse, de propriedade. Com estes laços, estas armadilhas,
Estas navalhas de suspeita. Eu queria morrer!

- quem é o homem?

- pelo amor de deus! Não existe homem algum, homem
Nenhum outro homem. Nenhum.

- e este nome? Preciso saber.

- todo mundo encontra em seus papéis, de vez em quando, notas que não sabe para que tomasse.

- fazendo um esforço, termina-se por recordar.

- uma vez que o louco é irredutível, não pode escapar à
Loucura e agir como os sãos, estes condescendem em agir
Como se fossem doidos. Não por deliberação. Insensivelmente
E porque não podem ser de outro modo. é o mal de conviver
Com loucos. Pois esta é a miséria: estou fazendo o esforço
Que me peço, tentando recordar. Preciso sair disto.
Preciso, de uma vez por todas, sair disto.

- então porque não saio?

Levanto-me, olhos pesam de sono, vou ao mictório,
Levo um tempo enorme comprimindo o botão niquelado,
Ouvindo o jato violento da água, sentindo prazer nisso, deito-me.
Giro entorno do leito posto no meio do quarto. Giro interminável giro, e este caminhar é o menos que beber, devagar, um vinho insinuante.

- estou pensando em quando fiz uma operação nos rins.
Por que, sempre que há cenas assim, ele me doe?Fizeram-me um enxerto nos rins, com tecido cortado nos meus intestinos. E esperaram. Haviam feito o que tinham de fazer. O resto não lhes competia, não podiam forçar o tecido a viver em sua nova função.

- aonde eu quero chegar?

- não sei. Estou buscando um sentido para esta
Lembrança. Meu corpo reagiu, fez com que o enxerto não morresse. Sobrevivi. Sobrevivi pra que? Posso saber?

- tivemos eu e eu horas muito felizes.

- para o diabo com elas! Não quero horas felizes. Quero confiança e um pouco de respeito. Essa hora feliz vem cheia de veneno.

- tudo na vida tem seu lado meu.

- aqui todos os lados são maus, mesmo os que parecem bons. Aqui é o inferno.

Alguém abre as cortinas, corre as vidraças, e tudo permanece como antes, aqui é o inferno, o ar petrificado betuma esta janela aberta, aqui é o inferno.

- é o inferno. Acho que as pessoas, às vezes, sem o saber são lançadas em vida no inferno. Ficam girando em roda, passando eternamente sobre os mesmos pontos. Quero sair disso, não foi de modo algum para esse sofrimento que meu corpo reagiu a morte. Mas como, se perdi a identidade e não sei mais quem sou? Somos como dois corpos enterrados juntos, roídos pela terra, os ossos misturados. Não sei mais quem sou.

- é porque nos amamos. Estamos confundidos, cada um é si próprio e também é o outro.

- isso não é amor. Não se perde a identidade no amor. Mas no escritório, na vida coletiva; ou na demasiado solitária por falta de pontos de referência. No amor, pelo contrário, devemos reencontrar nossa identidade perdida.

- repito que, no amor, cada um é si próprio e é o outro.

- está bem. Que encontrei ainda, hoje, em minha busca, de si próprio e do outro?

- prefiro não falar. Isso passou.

- agora já me embriaguei, aderi à loucura. Quero saber.

Giro em redor do leito no qual estou prostrada, respiramos com dificuldade, não com exaltação, mas fatigadamente. Gostaria de ignorar estes passos que me cercam, passam em trono de mim ataduras de aflição, terror e desamparo, desejaria sentar-se, ou deitar-me ânimo até de erguer a voz, pedir que cessem os passos.

- levantei o colchão, para ver se encontrava algum outro papel, revolvi a cesta. Tentei escrever. Era impossível, a tentação de continuar a procura não me abandonava. Deixei de lado Lawrence e suas cartas, pus-me a folhear nossos livros. A esmo, e em seguida de modo sistemático. As mãos frias. Dizia a mim mesmo que estava cumprindo um ato injusto, mas não me continha, ai buscando, era como se eu precisasse encontrar alguma coisa. Foi um acesso, um ataque.

- achei alguma coisa?

- pétalas secas de rosa. Seriam de alguma rosa oferecida por mim?

- de certo.

- eu não sabia. Olhava-as, como se pudesse existir nas rosas ofertadas por outro, uma textura diferente. Havia um bilhete, sem o nome do destinatário. Igual a muitos outros que recebi ao longo destes anos, principalmente nos primeiros anos. Mas talvez aquele não fosse dirigido a mim. Porque estava ali?

- quem pode saber?

- toda essa busca é tão inútil! Para ter-se a verdade sobre alguém, seria preciso ver seu espírito. E isto é impossível. Essas buscas, essa perseguição, essas inquietações...

- quero amar de um modo simples, definitivo, seguro.

Este silêncio e o espaço entre nós. A voz que rompe o espaço e o silêncio, com dificuldade, lenta, articulando uma hipótese perturbadora. (o amor, talvez, é uma espécie de enxerto. Não nos rins. Em outra parte qualquer, talvez na alma, e cujo êxito não depende de nós. Por mais que desejamos salva-lo, pode apodrecer e envenenar-nos.) e novamente o silêncio, espesso, amortecedor, palha e serragem entre objetos de louça.


- estarei então envenenado? Estaremos envenenados?

- não eu. Eu. Sim, pode ser que também eu esteja. Como posso saber se não sei mais quem sou?

- é mais de meia noite.

- muito mais. Não tarda a amanhecer outro círculo. O sol é redondo. Redonda é a terra. Em torno da terra fazemos uma volta; e a terra outra volta em redor do sol. E nós giramos, giramos e voltamos sempre ao mesmo ponto.